O presente artigo está fundamentado na obra de Dominique Salman. Apresenta o lugar da Filosofia na Universidade, analisando a situação atual da investigação filosófica no ambiente universitário. Salman apresenta o curso de Filosofia e a pesquisa filosófica como detentores de lugar marginal e de reduzida importância nas universidades, sendo ainda a nomenclatura utilizada de modo impróprio. A crítica se debruça sobre a sobrevivência nominal de uma organização (a universidade) que ambicionava ser a síntese de todo saber racional. Em sua obra, Salman aponta a Filosofia como sendo a posição de um fundamento crítico, onde a reflexão se exerce em busca dos sentidos fundamentais do pensamento e da ação, não podendo ser explicitadas pelas ciências particulares. Assim, o papel decisivo na missão da Filosofia nas universidades hoje é o de precaver o estudante contra essa forma sofisticada de incultura e de barbárie intelectual que é a especialização fechada em seu próprio domínio. Um saber distante da vida e dos problemas imediatos da sociedade faz com que a universidade reencontre a função primordial que a define, que é a distribuição social do saber e a participação intensiva nos problemas fundamentais da sociedade. A crise, portanto, se dá diante da inadequação da Universidade ao cumprimento de sua função social.
INTRODUÇÃO
Ao apresentar minha leitura acerca da obra de Dominique Salman, o primeiro questionamento que quero trazer é justamente o que se faz sobre qual o lugar da Filosofia na universidade Ideal. Frente a tal problema, na leitura de Salman, apresenta-se a hipótese de que a universidade ideal não existe e jamais existirá! Não existe porque é impossível reunir um número de investigadores dotados de possibilidades intelectuais excepcionais como se desejaria, e também reunir estudantes curiosos e receptivos que proporcionassem a assimilação e produção de necessários conhecimentos. Também faltaria a atmosfera vitalizadora da universidade, que não se traduz em bens materiais.
Mesmo não havendo a possibilidade de universidade ideal, não é inútil pensá-la, uma vez que pensar o ideal nos dá o sentido para o qual nos dirigiremos. Ter um ideal dirige nossos esforços e estabelece um fim. O questionamento que nos move, entretanto, é justamente o porquê estudar Filosofia nas universidades? O problema será encarado no que se refere à investigação dos professores e à formação dos alunos.
1. A UNIVERSIDADE E A FILOSOFIA
A obra de Salman apresenta curiosas flutuações existentes na história que, consideradas relevantes por ele, precisam ser explicadas. Tais flutuações históricas apresentam, ao longo da história das universidades e sua relação com a Filosofia, o ensino desta ocorrendo, ora sem universidade; ora em uma universidade como fundamento essencial; noutro momento ao lado da universidade que dorme; e também repartida entre a universidade e o esforço solitário.
Por natureza, a universidade é uma das instituições em que se encarna e pela qual se transmite a cultura humana – órgão necessário à cultura humana. Parece próprio da universidade encarnar a vida do espírito, com os mais altos valores da vida intelectual.
Mas a universidade não existiu desde sempre. As reflexões eram privilégio de pessoas isoladas, sem apoio da sociedade, com resultados que se perdiam por não haver uma instituição capaz de os conservar. Mais tarde é que surgem grupos cuja função seria recolher e conservar os conhecimentos antigos e transmiti-los às gerações futuras. É o marco da forma institucionalizada do pensamento, mas ainda centrada mais na conservação do que na reflexão pessoal, julgando nada poder contribuir.
Com a aparição do mestre, nota-se um progresso importante, porém, o discípulo é iniciado na sabedoria do mestre. As escolas se multiplicam, e com elas os confrontos de ideias. É a aparição do mestre como aquele que “ensina a pensar”. Essa reflexão autônoma possibilitará novas descobertas e, tão logo, surgirá a escola do pensamento, que combina a tradição transmitida com a aprendizagem pessoal. A universidade é resultado destes desenvolvimentos.
Historicamente, a universidade se constitui no século XIII (técnicos agrupados em faculdades, trabalhando textos autorizados e com biblioteca de comentários reconhecidos). Sofre decadência na Renascença, quando negligencia novas técnicas de investigação. Retoma seu vigor no século XIX, esforçando-se por integrar o conjunto das atividades do pensamento mais essenciais.
Considera esse prevê contexto historio, três pontos devem ser abordados. Primeiramente, a crescente multidão de conhecimentos acumulados ao longo da história humana; sequencialmente, e de modo quase que implícito, a necessidade de um mestre que, fundamentado nesse saber acumulado, ensine e pensar - reflexão pessoal; e, por último, mas não menos importante, a reunião de mestres com competências variadas em um lugar para promover o conhecimento.
A universidade é a instituição que organiza esta concentração de meios humanos e técnicos. Contudo, no século XVII, pensadores com suas ideias originais como Comte, Kierkegaard, Marx, Freud e alguns outros, foram obrigados a trabalhar fora das universidades. Não desconsiderando a grandiosidade de suas obras, a falta de contato com os outros setores do pensamento fez com que suas pesquisas acabassem empobrecidas, uma vez que integradas se desenvolveriam de maneira ainda mais eficiente, considerado o caráter social dos conhecimentos humanos e as exigências institucionais de seu desenvolvimento. Obras produzidas fora desse ambiente natural de conhecimento conseguiam, na visão de Salman, apenas integrar especialização de partidários, e não integrar o conjunto dos conhecimentos humanos.
2. A INVESTIGAÇÃO FILOSÓFICA NA UNIVERSIDADE
A investigação filosófica possui uma estrutura e, para o pensamento de Dominique Salman, a estrutura da investigação filosófica se dá em três naturezas: sistemática, histórica e científica.
A natureza Sistemática se dá basicamente na elaboração de uma doutrina que explique a natureza de uma determinada realidade, definindo seus princípios constitutivos. Essa natureza possui, em si mesma, partes distintas, cada qual estudando um aspecto diferente do real. Uma outra natureza é a Histórica, cuja atividade consiste na busca história que coloque o especulativo de hoje em contato com os mestres do passado, levando em conta que os problemas hoje estudados não são novos, e as concepções anteriores tem valor peças noções essenciais que apresentam. A terceira natureza apontada por Salman é a Científica, cuja missão é o fornecimento de elementos, a sugestão de sistematizações, permitindo verificações essenciais às seções mais diversas da Filosofia, de modo tecnicamente elaborado.
Essas naturezas, implícitas ao universo investigativo da Filosofia, balizam que, não havendo reflexão do real, a autoridade do mestre torna-se única lei, e a influência de pressões sociológicas ou de fidelidades pessoais se tornam imperativos nada filosóficos.
Ao longo da história, os filósofos foram substituídos por professores de História, que avaliaram os pensamentos dos outros e não se aventuraram eles próprios na busca da verdade, por ser mais fácil ou menos perigoso. É uma das engenhosas formas de incultura contemporânea que não pode contaminar a Filosofia e, tampouco a atividade filosófica, uma vez que à Filosofia e ao filósofo, compete uma formação pluridimensional, que permita efetivar diálogos que superem a citada forma de incultura, fundada na especulação, e no vazio do verbalismo sem contato com o real. Assim, a organização da pesquisa deverá adaptar-se às exigências de cada curso ou departamento da universidade, valorizando a natureza que melhor atender às suas necessidades.
A Filosofia tem como missão a integração suprema dos saberes, baseada em princípios transcendentes, por meio de uma sistematização que nem sempre se dá coletivamente, mas, sobretudo, na reflexão pessoal, balizada pela crítica permanente de colegas competentes. Tal cenário demonstra a necessidade e relevância de um ambiente que assegure o crescimento vigoroso e equilibrado.
3. A MISSÃO EDUCATIVA DA UNIVERSIDADE
A universidade ideal trabalhada por Salman tem na pesquisa ativa e desinteressada, a manifestação da vida da inteligência e, por meio da organização da pesquisa, constitui sua autêntica natureza, desempenhando outras funções na sociedade.
Tal ação se dará, pois será oferecida ao estudante, durante sua passagem pela universidade, uma educação que o prepare plenamente para a função de cidadão culto, que lhe permita prestar os serviços esperados da elite cultural de um país. A universidade se torna espaço para o educar, e não somente instruir. Educar o espírito inteiramente, não aptidões particulares.
A primeira função da universidade é sim a transmissão de cultura, porém, ter a transmissão de cultura como algo unilateral é desconhecer as demais exigências da educação universitária. A segunda função da universidade, e não menos essencial que a primeira, é acrescentar as descobertas do presente, progredindo nos conhecimentos em vista do futuro, uma vez que toda atividade humana se insere em um processo histórico contínuo. E a terceira função da universidade é justamente a integração dos conhecimentos em uma síntese viva entre o que se aprendeu do passado e aquilo que se desenvolve no presente.
Aqui temos um problema, pois o mundo se transformava de modo suave, e hoje, as transformações são tão rápidas, que não se consegue mais assistir passivamente às mudanças que se produzem. É preciso renunciar a costumes recebidos, aceitar ou recusar possibilidades novas, adaptar-se ou opor-se. Pensar assim para uma profissão já é difícil, quanto mais quando esse esforço deve estender-se infinitamente à vida humana.
Uma cultura unificada dificulta ainda mais essa síntese. A interdependência econômica, técnica e política nos faz investigar ainda mais seus princípios, o que exige uma forma de discernimento que distinga os valores absolutos daqueles relativos.
“A elite de amanhã deverá poder orientar-se em meio destas realidades complexas, reconhecendo os valores transcendentes que são princípios de unidade entre os grupos humanos, mas respeitando, ao mesmo tempo, as benéficas divergências que exprimem a originalidade das diversas culturas e enriquecem o tesouro comum da humanidade.” (SALMAN, 1969, p. 44).
Somente a elite culta será capaz de conseguir paz, entendendo sua cultura e concepção de vida humana, reservando espaço para transcender e entender as culturas de outros grupos.
4. A FILOSOFIA E A EDUCAÇÃO DO CIDADÃO
A Filosofia como educação do cidadão, encoraja a reflexão em todos os níveis do saber, seja para a pesquisa, seja para o ensino. Cada filósofo possui uma síntese pessoal, porém, as universidades deparam-se com a formação do profissional, não podendo assim exigir do estudante um conhecimento profundo de Filosofia pura, em todas as suas partes.
Cabe ao professor iniciar os estudantes na reflexão filosófica, possibilitando a eles perceber as possibilidades de justificar o que aprenderam e reajustar suas aplicações. Além disso, ao professor caberá oferecer uma visão do todo (conjunto), convenientemente articulada, dominando o pensamento e relacionando-o aos problemas pessoais.
Se a universidade se “perder” focando somente o setor restrito da profissão para o qual se formam os estudantes, sem a reflexão sistemática de tal conteúdo, acarretará o desequilíbrio e a incapacidade de reflexão de modo mais eficaz diante dos problemas mais essenciais de sua vida e, também, sua atividade profissional. As reflexões devem ser acessíveis e significativas, iniciando o aluno na maneira de pensar própria da Filosofia. Proporcionar esse êxito, mesmo que passageiro, dará origem à motivação e, se os êxitos se multiplicam, toma-se gosto por este gênero de investigação.
A maior parte das vocações filosófico-universitárias não concluirão o processo, por diversos motivos: doença, desânimo, preguiça, paixões, vícios, obrigações, etc. Muitos serão desviados da Filosofia. Muito raros serão os que continuarão. Isso pouco importa. Importa que foram iniciados. Sabem que existe o pensamento filosófico.
“(...) estes espíritos participam eficientemente do pensamento filosófico. Não são mestres do pensamento nem o exercem com familiaridade, mas conhecem sua existência e suas exigências e estão aptos para recorrer a ele, quando houver necessidade.”(SALMAN, 1969, p. 52).
Em linhas gerais, o ensino da Filosofia nas universidades, se consideradas as reflexões propostas e fundamentadas por Salman, se daria, basicamente:
1. Ensinando o método do pensamento (existem múltiplas modalidades de conhecimento certo e provável e é preciso aprender a discernir o certo do falso);
2. Ensinar a antropologia filosófica (conhecer a estrutura da personalidade humana, bem como sua natureza deliberadamente ética, fazendo-o compreender melhor a si mesmo e ao próximo);
3. Ensinar a Filosofia da sociedade:
a. conhecer a teoria da ação prática – estruturas que condicionam a vida humana;
b. conhecer os princípios da vida social – noções de bem comum, de pessoa e sociedade.
E, se podemos concluir algo das reflexões aqui travadas, para o problema formulado e as hipóteses defendidas, dois objetivos centrais seriam satisfatórios se alcançados como resultado da aplicação prática do modelo apresentado. O primeiro seria convencer os universitários – independente de sua formação pretendida, que a reflexão pessoal é necessária e possível. Ao lado desse convencimento, o segundo objetivo pretendido como resultado seria o de fazer reconhecer que decisões tomadas dependem de opções que implicam valores e princípios mais elevados da vida humana.
REFERÊNCIA
SALMAN, Dominique H. O lugar da filosofia na universidade. Trad. João Bosco Fonseca Lara. Petrópolis: Vozes, 1969.
Título original: La place de La philosophie dans l’université idéale
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