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Revolução e Crise: Filosofia e Educação na teoria política de Hannah Arendt

Atualizado: 21 de set. de 2021


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RESUMO

O presente artigo tem como objetivo discutir, à luz do pensamento e filosofia de Hannah Arendt, a crise educacional da modernidade, destacando o papel que a educação ocupa na superação das intempéries sociais, por vezes recorrentes. Discutir temas “velhos” como se fossem novos e, apresentar propostas “velhas” da mesma forma é uma prática habitual na sociedade moderna e, no pensamento arendtiano, a revolução está em implantar ideias novas no mundo velho. Permeando temas como a Educação, a Escola e o Professor, este artigo apresentará, em linhas gerais, a contribuição que a filosofia política – que Arendt preferia chamar teoria política, arendtiana traz para se pensar e transformar a crise educacional apontada pela e na modernidade.


INTRODUÇÃO

A modernidade tem nos apresentado as mais variadas formas e conceituações de crise e, por vezes, nos vemos condicionados a digerir e assimilar ideias que sequer compreendemos. Não obstante a nós, diferentemente da crise econômica, das crises políticas e dos conflitos armados, a crise educacional nos toca significativamente e em nossas bases, considerando a existência de um estudante em cada família brasileira, seja em que nível de escolaridade ocorrer sua matrícula.

Muitas têm sido as discussões acerca da crise educacional, e muitas também têm sido as controvérsias acerca do meio mais eficaz para superá-la. A leitura, mesmo que incipiente, da obra da filósofa política alemã, de origem judaica, uma das mais influentes do século XX, é uma contribuição profunda para ao menos provocar uma nova forma de olhar o cenário apontado.

A discussão sobre a Educação é um desafio que envolve muita responsabilidade, o que faz com que essa produção deva ser tomada como introdução ao pensamento arendtiano – não acabado, exigindo um suporte teórico conceitual acerca dos demais universos que as discussões contidas neste artigo exige.


FILOSOFIA E EDUCAÇÃO NA TEORIA POLÍTICA DE HANNAH ARENDT

Muito se tem discutido acerca da Educação em nosso país, da crise ou da pseudo-crise enfrentada há muito pela “tábua de salvação” da sociedade humana. Entretanto, muito se fala em crise na ou da Educação, e o que ocorre é que, talvez, esses que a discutem e apontam os caminhos para a superação da famigerada crise, nem saibam ou sequer tenham refletido a fundo sobre o que signifique tal termo.

Se recorrermos ao dicionário Aurélio teremos a definição de Educação como uma derivação feminina singular do verbo educar, substantivo feminino que se refere a um conjunto de normas pedagógicas tendentes ao desenvolvimento geral do corpo e do espírito. Ou ainda, conhecimento e prática dos usos da gente fina. E completa, instrução, polidez, cortesia.[1]

O primeiro questionamento, portanto, se daria justamente no campo em que se elegeria – para o substantivo, a vertente a ser considerada. Acreditamos, contudo, que se refira a essa esfera de ordem escolar, destarte, a crise se dá no ambiente formal de educação, ou seja, na escola. Definir tal linha de discussão pode parecer desnecessário a alguns, por mostrar-se tão óbvia, mas acreditamos necessária, considerada a amplitude de discussões que temos ouvido e que, ao menos ao que nos parece, tem confundido o sentido, não só de Educação, mas também de crise.

Feita essa pequena e superficial digressão, passemos à reflexão desse demarcado espaço educacional formal, de responsabilidade do Estado, com a participação da família e da sociedade, configurado direito de todos, visando o desenvolvimento pleno da pessoa para o exercício da cidadania e do trabalho, conforme reza o artigo 205 de nossa Constituição Federal.

Segundo Hannah Arendt (2005),

Uma crise nos obriga a voltar às questões mesmas e exige respostas novas ou velhas, mas de qualquer modo julgamentos diretos. Uma crise só se torna um desastre quando respondemos a ela com juízos pré-formados, isto é, com preconceitos. Uma atitude dessas não apenas aguça a crise como nos priva da experiência da realidade e da oportunidade por ela proporcionada à reflexão (ARENDT, 2005, p. 223).

Tomando por base o pensamento arendtiano, o questionamento da crise é imperativo, pois podemos estar discutindo o já discutido e, pior, respondendo o já respondido com a mesma argumentação. A crise é acentuada, sobretudo quando a realidade não é experienciada tal e qual é, mas fundamentada nos conceitos preestabelecidos (talvez por forças dominantes e por vezes elitizadas) nos exclui a possibilidade e o direito de pensá-la em sua essência. Ou seja, estamos a discutir algo sobre o qual não temos conhecimento essencial, pois não o experienciamos tal como é – a não ser em seus aspectos acidentais, mas pensamos acerca de algo que nos foi dado, contrariando a ideia de que nosso pensamento é nosso.

Segundo Arendt, “a falência do bom senso aponta como uma vara mágica, o lugar em que ocorre esse desmoronamento” (ARENDT, 2005, p. 227). Mágica, claro, num sentido figurado que implica pensar o modus operandi[2] em que se dá a reflexão acerca da crise educacional apresentada. A falta do bom senso parece substituída pelo mau senso, e dizemos isso porque seria diferente se houvesse apenas a falta. A falta substituída pelo senso ruim, ou mau senso, é que nos prejudica. Poderíamos fazer uso da mais célebre frase inglesa, de William Shakespeare: “To be or not to be: that's the question”, substituindo-a pelo questionamento: ter ou não ter bom senso: eis a questão!

Essa ausência do bom senso – contraposto ao mau senso, nos faz corroborar, aqui no Brasil, a tese arendtiana de que “A educação não pode desempenhar papel nenhum na política, pois na política lidamos com aqueles que já estão educados” (ARENDT, 2005, p. 225). É um posicionamento duro, mas, de fato, não há uma adequada formação (educação) política entre aqueles que, na sociedade, discutem Educação.

A educação dos adultos, assim como a incumbência que se dá aos jovens para o exercício da atividade política é um equívoco, já que educar um adulto é, a bem da verdade, persuadi-lo e, na leitura arendtiana, coagir “sem o uso da força” (ARENDT, 2005, p. 225). Aos jovens, a imposição de um mundo idealizado é, nada mais nada menos, que a perpetuação desse velho mundo (maquiado de novo) que aí se faz.

A essa altura de nossa reflexão, queremos propor que tomemos outro questionamento trazido por Hannah Arendt, e que nos leva a pensar não só a crise (pseuda ou não), mas a capacidade que temos em aprender dela. Questiona Arendt,

Quais foram os aspectos do mundo moderno e de sua crise que efetivamente se revelaram na crise educacional [...] Em segundo lugar, o que podemos aprender dessa crise acerca da essência da educação [...], ou seja, sobre a obrigação que a existência de crianças impõe a toda sociedade humana? (ARENDT, 2005, p. 234).

Frente a tal questionamento, nos deparamos no presente, confrontados com o passado, em busca de uma compreensão embasada em evidências sólidas acerca da crise da modernidade. Em caso afirmativo, ou seja, havendo de fato a crise, é necessário perceber o que a legitima e, posteriormente, compreender porque não conseguimos lidar com ela, ou, na melhor das hipóteses, porque temos tamanha dificuldade em enfrentá-la com chances de vencê-la.

O pensamento arendtiano faz uma distinção entre o que precisa ser exposto e, sobretudo na Educação, precisa ficar oculto, sob pena de prejudicar a qualidade e a eficácia do processo. Diante da crise, a postura daqueles que educam é a de selecionar o que de fato deve ser exibido e aquilo que não cabe aos educandos participar. Segundo Arendt,

Quanto mais completamente a sociedade moderna rejeita a distinção entre aquilo que [...] somente pode vicejar encobertamente e aquilo que precisa ser exibido a todos à plena luz do mundo público [...] mais difíceis torna as coisas para suas crianças, que pedem, por natureza, a segurança do ocultamento para que não haja distúrbios em seu amadurecimento (ARENDT, 2005, p. 238)

A Educação, numa sociedade em crise, possui um papel fundamental e de valor incomensurável, uma vez que uma sociedade em crise tem, como dever prioritário, que defender da estabelecida crise, o processo educacional que se dá em seu território (prioritariamente defender suas crianças), uma vez que, estendida a crise no espaço educacional, as gerações posteriores (que dali nascem) estarão imersas nos mesmos valores e crenças antigas, mesmo que com roupagem de ideias novas, recorrentemente discutidas e sucessivamente malfadadas.

Destacar aqueles que, por mérito, possuem maiores e melhores condições para atuarem nesse espaço formativo não deveria ser motivo de acentuação do desconforto estabelecido. Antes, necessitaria ser tomado como remédio para o mal social – ou crise, uma vez que parece “ [...] óbvio que um nivelamento desse tipo só pode ser efetivamente consumado às custas da autoridade do mestre ou às expensas daquele que é mais dotado, dentre os estudantes” (ARENDT, 2005, p. 229).

A massa das sociedades tem se embrutecido com essa falsa ideia de que a emancipação se dá por meio de um “libertarismo” infundado e uma libertinagem autorizada que beira ao caos. Conceitos como esses, abertamente difundidos em mídias populares e entre cidadãos heterônomos – que estão sob a tutela de outros, acabam disseminando ideologias vazias de sentido e de ordem, necessários ao bom andamento social e, consequentemente, desqualificando a educação que se oferta nessa e para essa sociedade.

Hannah Arendt salienta que, “ao emancipar-se da autoridade dos adultos, a criança não foi libertada, e sim sujeita a autoridade muito mais terrível e verdadeiramente tirânica, que é a tirania da maioria” (ARENDT, 2005, p. 230). Estar submetido ao que a maioria faz e pensa é deixar de ser, e passar a simplesmente existir.

Essa nova Educação em crise, que forma para o mundo, traz em si um conceito malogrado em que a escola é uma extensão (ou deve ser) do mundo lá fora. Contudo, a escola não é o mundo lá fora e tampouco deve sê-lo. A escola é a instituição oficial que tem o intuito de fazer com que seja possível de alguma forma, a transição do ambiente familiar para o mundo, ou seja, do domínio privado do lar para o mundo (ARENDT, 2005, p. 238).

O perigo de tal inversão de valores ou proposta educativa é apontado por Arendt como algo nocivo, pois “toda vez que esta [pessoa: criança ou adulto] é permanentemente exposta ao mundo sem a proteção da intimidade e da segurança, sua qualidade vital é destruída” (ARENDT, 2005, p. 236).

Nesse momento, refletir o papel do professor se faz relevante, uma vez que, nesse modelo educacional que supera a crise (esta e qualquer outra forma de crise que se assente sobre a civilização) “a qualificação do professor consiste em conhecer o mundo e ser capaz de instruir os outros acerca deste, porém sua autoridade se assenta na responsabilidade que ele assume por este mundo” (ARENDT, 2005, p. 239).

Novas ideias tem se apresentado em nome da crise e, ao que parece, a novidade de ideias tem, ao invés de solucionado, acentuado as crises. A busca pela autonomia, por vezes precoce, tem condenado gerações inteiras ao fracasso social, moral, ético, cultural e tantas vertentes da formação básica para a natureza humana.

O que a filosofia arendtiana chama estranhamento de mundo deve ser uma máxima aos princípios da educação que se pretende vencedora ou erradicadora da crise, e mesmo que ocorra um processo quase que automático de imersão na crise, não podemos nos esquecer que está ao alcance do poder do pensamento e da ação humana interromper e deter tais processos (ARENDT, 2005, p. 245).

Não podemos permanecer atribuindo responsabilidade à crise, e continuar criando outras tantas que sequer existem. É necessário que a civilização autônoma manifeste sua indignação por meio de ações concretas que atribuam responsabilidade a quem é devida, uma vez que “a autoridade foi recusada pelos adultos, e isso somente pode significar uma coisa: que os adultos se recusam a assumir a responsabilidade pelo mundo ao qual trouxeram as crianças” (ARENDT, 2005, p. 240).

A sociedade em crise educacional jamais conseguirá superar a crise, seja na educação ou em qualquer área social – considerando que todas decorrem dessa primeira, enquanto a ideologia educacional vigente tratar crianças como adultos, e “aquilo que, por excelência, deveria preparar a criança para o mundo dos adultos, o hábito gradualmente adquirido de trabalhar e de não brincar, é extinto em favor da autonomia do mundo da infância” (ARENDT, 2005, p. 233).

Arendt é categórica ao dizer que “qualquer pessoa que se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação” (ARENDT, 2005, p. 239).

O novo, o revolucionário, a mudança de paradigmas é, justamente, a efetivação de uma modalidade educacional conservadora, não no conceito preestabelecido pela massa intelectualmente falida, ou mesmo o conceito preconceituoso da massa ideologicamente infundada, mas conservadora no contexto em que preserva a novidade e introduz algo novo em um mundo velho. O comportamento hoje aparentemente revolucionário é sempre, do ponto de vista da geração seguinte, um comportamento obsoleto e fadado à destruição (ARENDT, 2005, p. 243).

Urge pensarmos a crise com autoridade. Autoridade intelectual, moral, ética, de modo que, com propriedade e consciência, possamos salvar, não a nós, mas a própria espécie que se deteriora em seus aspectos fundantes por uma crise tão antiga quanto a raça humana, e que hoje conjecturamos chamar Crise na Educação. Em seu ensaio “O que é autoridade?”, Hannah Arendt elucida que a perda da autoridade é o findar de uma jornada que destruiu a religião e toda forma de tradição, e aquele “fio que nos guiou com segurança através dos vastos domínios do passado” (ARENDT, 2005, p.130), hoje se demonstra tão frágil, ao ponto de ser definitivamente rompido.

Em Arendt, a discussão acerca da crise educacional está contrapondo os discursos pedagógicos da modernidade, onde a crítica à educação tradicional se dá sem reservas. Para a filósofa “O problema da educação no mundo moderno está no fato de que ela não pode abrir mão nem da autoridade, nem da tradição, e ser obrigada, apesar disso, a caminhar num mundo que não é estruturado nem pela autoridade nem tampouco mantido coeso pela tradição [...] Não sei, mas sei que não podemos abrir mão nem do mundo nem das crianças” (ARENDT, 1992, p.246).


CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acreditamos que pudemos perceber que nossas concepções de crise e mesmo de Educação nos remetem a uma ponderação um tanto quanto significativa, considerados os modelos vigentes na modernidade, que nos levam a crer o inacreditável, e aceitar o inaceitável. As questões que se apresentam hoje a nós são recorrentes e também as respostas dadas a elas são reproduzidas como se novas fossem.

A massificação ideológica, que mata a possibilidade de um pensar novo diante do velho, é uma maneira apresentada por Arendt para lidar com o problema, e sua argumentação atesta a possibilidade de soluções que só emergirão de um processo de reflexão que seja sério e objetivo. A crise do bom senso que chegou à Educação fez com que ficassem expostos a intimidade e a segurança individual, sobretudo da criança, e fossem ocultados aqueles princípios que essencialmente deveriam ser evidenciados no processo educativo, a saber, a maneira particular que a criança tem de conhecer o mundo e a necessidade da autoridade e da tradição.

Não existem em Hannah Arendt modelos acabados para suplantar a crise, mas ao tomá-la (a crise) como de fato é, gera no sujeito autônomo e responsável uma inquietação que é manifesta na resposta nova frente ao velho, o posicionamento dos mais aptos a formar aqueles que necessitam de orientação para não serem expostos e subjugados à tirania da maioria.

O professor é a autoridade, por ser capaz de conhecer o mundo de modo ampliado, fazendo uso do conhecimento que a tradição transmitiu, e sabendo instruir. Impressiona em Arendt a tradição, isso porque a massa a toma como tradicionalismo, contudo, uma educação mergulhada na tradição e na autoridade é um forte elemento da conscientização, não encontradas em outros âmbitos da sociedade moderna.


REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. A crise na educação. In: Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. 3ª reimpressão da 5ª ed. de 2000. São Paulo: Perspectiva, 2005.

_______. A tradição e a época moderna. In: Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. 3ª reimpressão da 5ª ed. de 2000. São Paulo: Perspectiva, 2005.

_______. O que é autoridade? In: Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. 3ª reimpressão da 5ª ed. de 2000. São Paulo: Perspectiva, 2005.

______. Entre o passado e o futuro. Tradução Mauro W. Barbosa de Almeida. São Paulo: Perspectiva, 1992.


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NOTAS EXPLICATIVAS:

[1] Disponível em: http://www.dicionariodoaurelio.com/educa%C3%A7%C3%A3o. Consulta realizada em 22 de setembro de 2014, às 15h06min.

[2] Expressão latina que significa "modo de operação", utilizada aqui para designar a maneira como se dá a reflexão acerca da crise, adotando procedimentos como se fossem códigos.


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