Na atualidade discutir afeto tem se tornado algo complexo. Talvez porque a compreensão acerca do que é afeto tenha se perdido nesse processo globalizado de ser coisa ao invés de ser pessoa. A reflexão sobre nossa dimensão humano-afetiva exige de nós um nível de consciência bem elaborado, considerando que a dimensão afetiva do homem é também biológica, implicando seu desenvolvimento físico que, como nos animais, é também instintivo e, frente a todo instinto, há de se cuidar para que não se perca o controle, sob pena de tornar-se algo patológico.
Por vezes tentamos limitar nossa dimensão afetiva a uma dimensão de natureza estritamente psicológica, do desenvolvimento emocional, ou seja, de nossas emoções e sentimentos. Contudo, seria psicologismo fazê-lo, uma vez que o ser humano compreende, além do físico e do psíquico, as dimensões antropológica, sociológica, teológica, filosófica e tantos outros componentes implícitos à complexa natureza humana.
Nossos afetos se relacionam intimamente com nossa compreensão acerca de quem é o ser humano, e isso se dá de maneira relacional, seja na relação com o imanente (realidade que vemos, concretas) ou com o transcendente (realidade que não vemos, além da matéria, “espirituais”), mas, de modo geral, com tudo aquilo que é, ou seja, que existe.
Desde o útero o ser humano tem seu desenvolvimento pautado nas leis particulares da natureza humana formando o seu corpo, um veículo que, já nesse início, interage com outro corpo – o da mãe, que o nutre até seu nascimento. Se fôssemos falar em ambiente de interação, o útero materno seria o primeiro meio interativo do homem, seu meio ambiente primaz, o que nos leva a questionar se seriam os atuais humanos “inafetivos” seres desprovidos de qualidade em seu ambiente relacional primaz.
É nesse primeiro processo interacional que tem início o aprendizado humano em sua dimensão afetiva, considerando a sensibilidade que o humano bebê possui em captar, por meio de estímulos orgânicos da mãe, uma infinidade de mensagens emocionais. Afetado diretamente pelas emoções maternas, o futuro desse ser humano já se vê condicionado frente às tensões e ansiedades de sua genitora. Se formos analisar os atuais conflitos na dimensão afetiva individual e coletiva poderíamos explicá-los tomando as tensões e estímulos orgânicos sofridos em seu primeiro processo interacional.
Após o nascimento, o desenvolvimento biológico exige uma luta por sobrevivência, e a nova experiência se dá entorno do seio materno, canal para obtenção do alimento, mas, sobretudo, meio para o estabelecimento de novos vínculos afetivos. Esse processo de desenvolvimento biológico e afetivo é tão interessante que, no momento em que a mãe amamenta, estabelecem entre si uma relação de unidade indizível. O afeto na vida do bebê é tão importante quanto sua alimentação e, porque não dizer, indispensável ao seu desenvolvimento saudável, o que nos leva a crer que a ausência de afeto pode, após o nascimento, acentuar as características individualistas de luta pela sobrevivência em detrimento dos vínculos afetivos.
Dessa relação inicial e íntima com a mãe, o recém-nascido começa a adaptar-se às condições de temperatura, às outras pessoas, aos objetos e espaços, estabelecendo um processo relacional. Segundo o psiquiatra Otto Friedmann Kernberg, o ser humano nessa fase inicial da construção da relação com o outro passa pela fase da indiferenciação, da diferenciação, da individuação e da integração objetal, processos nem sempre contínuos e complementares. Segundo o psiquiatra, podem ocorrer fixações com as consequências relativas a cada fase, seguindo o desenvolvimento biológico, da infância e da adolescência à fase adulta - 21-25 anos.
Desta afirmação, podemos nos questionar sobre o que estaria sendo fixado pelas novas gerações e como elas têm se adaptado ao processo relacional nessa nova sociedade.
Ao mesmo tempo em que se desenvolve fisicamente – crescimento biológico, também acontece o amadurecimento emocional, com características próprias em cada fase, que diferentemente do primeiro, não segue um ciclo de nascimento, desenvolvimento, envelhecimento e morte. Esse amadurecimento emocional é bem mais complexo, e envolve, além da afetividade, a sexualidade, que apesar de também constituir-se elemento biológico, com energia específica, além das demais energias vitais, envolve também o emocional e o afetivo, muitas vezes confundidos.
A experiência humana é marcada pela afetividade e pela sexualidade, termos distintos, porém, interligados, envolvendo a razão e a emoção. A afetividade se caracteriza pelos sentimentos e emoções, meios pelos quais a afetividade se manifesta. As emoções podem ser de satisfação, prazer ou bem estar, mas também podem refletir sofrimento, dificuldades, desprazer e até gerar agressividade.
A ausência de sentimentos poderia ser a causa da ausência de afeto?
Uma população que não sente, não se envolve, seria uma população que não demonstra afeto?
O dia-a-dia do ser humano se dá entorno de relações afetivas. Desde o que comemos ou bebemos, o modo como nos vestimos, o onde e como trabalhamos, nosso cotidiano está cercado por afetos, é uma característica humana que toma conta de todo o ser da pessoa humana.
Contudo, nem todos aceitamos ou mesmo reconhecemos a presença e a importância do afeto em nossa vida, sobretudo se considerarmos as dificuldades que encontramos em suas variadas formas de expressão e, em uma sociedade individualista, parece ser ainda mais difícil e complexo ser afetivo. Há ainda de se pensar quais as maneiras aceitas, politicamente corretas ou aprovadas para ser ou desenvolver afetividade, sob pena de ser excluído do meio social dominante. Parece não haver liberdade para ser e demonstrar afeto.
Formas de afeto têm sido rejeitadas em determinadas culturas, por vezes, hostilizadas de modo agressivo. Há maneiras de afeto que parecem restritas a determinadas etapas do desenvolvimento, deixando de serem praticadas ou possíveis depois de certa idade, podendo originar comentários como “você não tem mais idade para isso” ou mesmo “nem parece uma pessoa madura”.
Podemos (e devemos) expressar nossa afetividade de tantas maneiras, mas resta coragem para fazê-lo! Pequenos gestos, manifestações silenciosas, abraço, beijo, carinho, cumprimento, sorriso, olhar, bilhete e tantas formas podem ser utilizadas. Somos um ser de afeto, e devemos ser o que somos, não o que querem que sejamos.
Devemos nos preocupar com a educação de nossas crianças, mas, sobretudo, refletir acerca de nós mesmos, sobre o quanto estamos estigmatizados pelo que sofremos, não para nos lamentarmos, mas para revertermos eventuais desvios que nosso processo relacional inicial causou em nossos sentimentos e afetos para assim, lutarmos juntos por uma sociedade mais humana, com mais sensibilidade às causas sociais, em prol do bem comum e da justiça social.
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