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Consumidores de Tragédias

Atualizado: 28 de jun. de 2021






O que me levou a escrever esse comentário foi a frequência com que a expressão "tragédia" tem sido empregada, sobretudo nas diferentes mídias e redes sociais, nas últimas semanas. Embora o título desse comentário, inicialmente, remeta a algo ruim, não é esse o cunho que quero dar à discussão.

De origem grega, a palavra tragédia é, de modo simplificado, um drama caracterizado por uma seriedade e dignidade, em geral, originária dos deuses, do destino ou da sociedade. Vulgarmente tem, na desgraça, seu sinônimo.

Contudo, gostaria de convidá-lo a tomar a discussão sob a ótica aristotélica, para quem a tragédia apresenta-se com um resultado catártico, onde o expectador tem explicada sua atração pelo sofrimento dramatizado.

Há quem diga que qualquer história com final triste é uma tragédia.

Outros há para quem a história precise, necessariamente, preencher quesitos para que sejam tomadas como tragédia.

Em "A Poética", Aristóteles estuda e analisa a tragédia. Esse estudo tem fundamental papel na cultura grega e, na cultura ocidental, ainda hoje, é prescritivo para muitos pesquisadores. Descrita como "imitação de uma ação completa e elevada", era expressa em linguagem com ritmo, harmonia e canto. Nela os personagens atuavam diretamente, não havendo relato indireto.

Com função provocativa da purificação dos sentimentos - a catarse, compaixão e temor revelam-se elementos catalisadores.

A tragédia clássica, na descrição aristotélica, apresenta três condições fundamentais: ter linguagem digna; se dar frente a personagens de elevada condição (heróis, reis, deuses); e possuir final triste. No caso grego, não raro são fins onde a destruição ou a loucura acomete um ou vários personagens.

A tragédia grega não sobreviveu aos nossos dias. Talvez a decadência da linguagem digna ou do interesse pelos assuntos externos tenha subjugado o idealismo das tragédias gregas ao ceticismo moderno. Mas, seja por que motivo for, pouco restou da tragédia clássica grega, catártica e, portanto, de efeitos positivos.

A perda da tradição dramática não é nossa culpa, mas os efeitos chegaram a nós. Talvez a incapacidade romana de reavivar a tradição dramática tenha conduzido a tantas adaptações das tragédias gregas, sem revelar o mesmo sentimento trágico, que acabaram tendendo ao melodrama.

Qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência! Brumadinho, Ninho do Urubu, a queda do helicóptero do Boechat e até a morte de Bibi. Tragédia, noticia a mídia.

Imprudência, negligência e imperícia são tragédias. Destruição é tragédia. Morte é tragédia. Não deixam de ser!

Contudo, o que tais "tragédias" causam em nós? Não quero que minhas palavras sejam tomadas como menosprezo à dor ou ao sofrimento, sobretudo de quem os viveu. Mas, analisar o que a catarse aristotélica comunica é, de tamanho valor, que me coloca a pensar exatamente o que constitui uma tragédia - discussão recorrente em debates filosóficos.

Hoje, os expectadores de tragédias, as consomem sem, ao menos, permitir um movimento catártico em suas mentes e almas. Observam, passivos, as dores e angústias dos seus pares humanos, sem que isso lhes possibilite - parafraseando Aristóteles, "uma ação completa e elevada" por meio de reais sentimentos de compaixão e temor.

Talvez a linguagem digna seja um aspecto relevante a ser discutido - mas fica para um outro texto.

Contudo, os personagens de elevada condição continuam sendo expostos nessa vitrine, que exibe finais tristes, até que outros cheguem e o sobreponham. As histórias desses "heróis, reis e deuses" são contadas até que outra surja.

Nesse momento, a ideia de imortalidade me intriga, já que não se trata de existir para sempre, mas de estar eternizado nas mentes e história de um povo, que vivenciou e aprendeu dessas situações. Que evoluiu culturalmente ao ponto de não permitir que tais tragédias se repetissem. Celebrar aniversários de tragédias não provoca catarse. Pagar indenizações, muito menos.

Espero que os finais tristes, característicos das tragédias, não tirem de nós a capacidade de reflexão nessa sociedade melodramática, que não quer nos fazer pensar, mas consumir!


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profMárioCosta

Obrigado pela visita!

Espero que a leitura tenha sido proveitosa e agradável. Volte sempre!

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